domingo, 6 de dezembro de 2009

Acabou a fartura: a crise global dos alimentos

National Geographic
Por Joel K. Bourne Jr.


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Foto de John Stanmeyer
inconformados com os preços dos alimentos, egípcios furiosos buscam pão subsidiado perto das pirâmides, em Gizé. A demanda crescente e a oferta estagnada trouxeram de volta o debate sobre a produção acompanhar o aumento da população.
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É um dos atos mais naturais e simples, tanto quanto respirar ou caminhar ereto. Nós nos sentamos à mesa, pegamos um garfo e nos deliciamos com uma porção de comida saborosa, sem darmos atenção a todas as ramificações globais que se cruzam em nosso prato. Num jantar hoje, poderíamos comer carne da Argentina, acompanhada por vinho da África do Sul; o azeite vem da Sicília; a água mineral, da França; e o arroz, da Tailândia. A sociedade moderna nos poupou do fardo de cultivar, colher e preparar o pão de cada dia, em troca de apenas pagar por ele. Só quando os preços sobem é que nos damos conta disso. E as consequências de nossa falta de atenção são profundas.

No ano passado, o aumento no custo dos gêneros alimentícios foi um sinal de alerta ao planeta. Entre 2005 e meados de 2008, o preço do milho e do trigo triplicou, e o do arroz quintuplicou, desencadeando tumultos sociais e lançando na pobreza mais de 75 milhões de pessoas. Mas, ao contrário de outras ocasiões em que o aumento foi provocado por escassez temporária dos alimentos, dessa vez a carestia se deu em um ano de safra recorde de grãos. Agora, os preços elevados são o sintoma de um problema maior que afeta nossa rede mundial de produção de comida. Em resumo, durante grande parte da última década, o mundo consumiu mais do que foi capaz de produzir. Após anos de utilização de suas reservas, em 2007 os estoques reguladores ficaram reduzidos a apenas 61 dias de consumo global, o segundo nível mais baixo de que se tem notícia. “O aumento da produtividade agrícola é de apenas 1% a 2% ao ano”, alertou, no auge da crise, Joachim von Braun, diretor-geral do Instituto Internacional de Pesquisas de Políticas Alimentares, em Washington, DC. “Isso é muito pouco para atender ao crescimento demográfico e ao aumento da demanda.”

A subida nos preços é sinal de que a demanda está superando a oferta, ou seja, de que logo não vai haver comida para todo mundo. Essa inflação na agricultura prejudica com mais intensidade o grupo de 1 bilhão de pessoas mais pobres do planeta, pois elas gastam de 50% a 70% de sua renda só para comer. Mesmo após caírem com a implosão da economia mundial, os preços continuam perto de seus níveis máximos, assim como os problemas de estoques baixos, aumento demográfico e redução na taxa de crescimento da produção agrícola. E estima-se que as mudanças climáticas – com as épocas de cultivo mais quentes e a escassez de água cada vez maior – contribuam para reduzir as safras, fazendo surgir o espectro daquilo que cientistas estão chamando de “crise alimentar perene”.

Então, qual é a solução para um mundo cada vez mais quente, populoso e faminto?

Essa é a questão que Von Braun e seus colegas do Grupo Consultivo sobre Pesquisa Agrícola Internacional estão em busca de responder. O grupo reúne centros de renome mundial cujos esforços ajudaram a mais do que dobrar o rendimento das safras de milho, arroz e trigo entre a década de 1950 e os anos 90. Todavia, com a população mundial avançando para os 9 bilhões de habitantes ainda neste século, será preciso repetir tal façanha, duplicando a atual produção de alimentos até 2030.

Em outras palavras, precisamos de nova revolução verde. E teremos de realizá-la em metade do tempo exigido pela anterior.

Desde que nossos antepessados abandonaram a caça e a coleta em favor do arado e do cultivo do solo há 12 mil anos, o aumento demográfico acompanha nossa capacidade de produzir alimentos. A cada avanço – domesticação de animais, métodos de irrigação, aumento no número de safras anuais – houve um salto correspondente na população humana. E, sempre que a oferta se estabilizou, o mesmo ocorreu com a quantidade de gente no planeta. No passado, autores árabes e chineses notaram tal vínculo entre a população e a produção de alimentos, mas foi só no fim do século 18 que um estudioso britânico explicou o mecanismo dessa relação.

O matemático Thomas Robert Malthus, que daria origem a expressões como “colapso malthusiano” ou “maldição malthusiana”, era um clérigo de maneiras afáveis que, segundo seus críticos, não podia ter sido mais pessimista. A população humana, notou ele, cresce de maneira geométrica, dobrando a cada 25 anos se nada for feito, enquanto a produção agrícola aumenta de maneira aritmética – ou seja, bem mais devagar. Essa era, portanto, uma armadilha biológica da qual a humanidade não podia escapar.

“A capacidade [de reprodução] da população é maior que a capacidade da terra de gerar subsistência para o homem”, escreveu no Ensaio sobre o Princípio da População, em 1798. “Isso implica forte e constante restrição sobre a população em função da dificuldade de subsistência.” Para Malthus, a restrição podia ser voluntária, sob a forma de controle de natalidade, abstinência sexual ou adiamento da época de casamento – ou, então, involuntária, como os flagelos da guerra, da fome e das enfermidades. Ele opunha-se à distribuição de alimentos a todos aqueles que não fossem miseráveis, pois acreditava que tal ajuda humanitária seria um estímulo para o nascimento de mais crianças em famílias pobres.

A Revolução Industrial e o aproveitamento dos terrenos públicos ampliaram a quantidade de alimentos produzida na Inglaterra e, por isso, Malthus acabou relegado à lixeira da era vitoriana. Mas foi a revolução verde, no século 20, que fez do reverendo objeto de zombaria dos economistas modernos. De 1950 até hoje, o mundo testemunhou a maior explosão demográfica na história humana. Desde a época de Malthus, 6 bilhões de pessoas foram acrescentadas às mesas de jantar do planeta. Graças ao aperfeiçoamento dos métodos de cultivo, a maioria dessas pessoas foi alimentada. Parecia que havíamos deixado para trás as restrições malthusianas.

Ou, pelo menos, era o que achávamos.

Na 15ª noite do nono mês do calendário lunar chinês, 3 680 pessoas, quase todas com o sobrenome “He”, reuniram-se sob um toldo com goteiras na praça do vilarejo de Yaotian, e esbaldaram-se em um banquete com 13 pratos. O evento era uma festa tradicional em honra aos antepassados. Terrinas de sopa fumegante foram distribuídas, seguidas de travessas de macarrão, arroz, peixe, camarão, verduras no vapor, bolinhos, pato, galinha, raiz de lótus, pombo, cogumelos e cortes variados de carne de porco.

Mesmo com a recessão global, a situação ainda é boa na província de Guangdong, no sudeste da China, onde Yaotian se ergue entre hortas minúsculas e intermináveis áreas industriais com as novas fábricas que contribuíram para fazer da província uma das mais prósperas do país. Quando a vida vai bem, os chineses comem carne de porco. Muita carne de porco. O consumo de carne suína per capita no país mais populoso do mundo aumentou 45% entre 1993 e 2005, passando de 24 para 34 quilos por ano.

O consultor de suinocultura Shen Guangrong recorda-se de seu pai criando um porco por todo o ano para que fosse abatido e consumido no Ano-Novo chinês. Era a única ocasião em que comiam carne. Os porcos criados pelo pai de Shen não requeriam muitos cuidados, pois provinham de resistentes variedades malhadas que se contentavam com quase qualquer coisa: restos de comida, raízes, lixo. Mas os porcos atuais da China são bem diferentes. Após os protestos na praça da Paz Celestial em 1989 que marcaram o ápice de um ano de turbulência política exacerbada pela carestia dos alimentos, o governo passou a oferecer incentivos fiscais para que grandes empresas industriais atendessem à demanda interna. Shen acabou trabalhando em uma das primeiras Unidades de Criação Animal Concentrada (Cafo, na sigla em inglês) da China, na cidade vizinha de Shenzhen. Tais unidades, que se multiplicaram nos últimos anos, dependem de linhagens suínas alimentadas com misturas sofisticadas de milho, soja e suplementos para que os animais cresçam com mais rapidez.

Essa é uma boa notícia para o chinês médio apreciador de carne de porco. Por outro lado, é motivo de preocupação quando se leva em conta os estoques de cereais no mundo. Por mais saborosa que seja a carne de porco agridoce, o consumo de carne é uma forma ineficiente de uma pessoa se alimentar. Para se obter com carne de porco a mesma quantidade de calorias presente nos cereais, o animal precisa ingerir cinco vezes mais cereais do que se a pessoa os consumisse diretamente.

Com uma quantidade cada vez maior de grãos destinada aos rebanhos e à produção de biocombustíveis para veículos, a demanda mundial de cereais subiu de 815 milhões de toneladas, em 1960, para 2,2 bilhões, em 2008.

Desde 2005, apenas a produção de biocombustíveis elevou a demanda de cereais de 20 milhões de toneladas anuais para 50 milhões de toneladas, embora essa tendência possa mudar devido à estagnação no setor de etanol.

Até mesmo a China, a segunda maior produtora de milho do mundo, não consegue cultivá-lo em volume suficiente para alimentar seu rebanho suíno. Grande parte dessa lacuna é completada com soja importada dos Estados Unidos e do Brasil, este último um dos poucos países que ainda podem ampliar sua área de cultivo – muitas vezes à custa de regiões de floresta. A crescente demanda de alimento, forragem e biocombustível foi um dos principais estímulos para o desmatamento em áreas tropicais. Entre 1980 e 2000, mais de metade das novas áreas de cultivo nos trópicos tomou o lugar de florestas úmidas intactas – só o Brasil aumentou suas plantações de soja na Amazônia num ritmo de 10% ao ano, entre 1990 e 2005.

Parte da soja brasileira pode acabar nos cochos da Fazenda Guangzhou Lizhi, a maior Cafo na província de Guangdong. Construídos em um vale verdejante, 60 galpões brancos para criação de porcos se distribuem em torno de grandes lagoas que fazem parte do sistema de tratamento dos dejetos produzidos por 100 mil animais. A cidade de Guangzhou também está instalando nova unidade de processamento de carne com capacidade para abater 5 mil porcos por dia. Quando a população chinesa chegar a 1,5 bilhão de pessoas, o que vai ocorrer nos próximos 20 anos, serão necessários outros 200 milhões de porcos para atender à demanda doméstica, segundo especialistas. E estamos falando da China. Estima-se que o consumo de carne no mundo possa dobrar até 2050. Isso significa que vamos precisar de muito mais cereais.

Esta não é a primeira vez em que o mundo se vê à beira de uma crise de alimentos – é apenas sua versão mais recente. Com 83 anos, Gurcharan Singh Kalkat é velho o suficiente para se lembrar de um dos piores surtos de fome no século 20. Em 1943, até 4 milhões de pessoas morreram em uma “correção malthusiana” que ficou conhecida como a “fome de Bengala”. Nas duas décadas seguintes, a Índia viu-se obrigada a importar milhões de toneladas de cereais para alimentar sua população.

Então ocorreu a revolução verde. Em meados da década de 1960, enquanto a Índia lutava para garantir a sobrevivência de seus habitantes em meio a outra seca, um especialista em agricultura, o americano Norman Borlaug, colaborava com pesquisadores indianos para a introdução de variedades de trigo de alta produtividade na região do Punjab. As novas sementes foram um dom divino, afirma Kalkat, então vice-secretário de Agricultura do Punjab. Até 1970, os agricultores triplicaram a produção sem aumentar a carga de trabalho. “Aí o problema era o que fazer com os excedentes agrícolas”, lembra-se Kalkat. “Tivemos de fechar as escolas um mês mais cedo para guardar a colheita de trigo nos prédios.”

Nascido no estado de Iowa, Borlaug atribuiu-se a missão de difundir em regiões pobres as práticas agrícolas de alta produtividade que transformaram o meio-oeste americano no celeiro do mundo. As novas variedades anãs de trigo, com caule pequeno e espesso que sustentava espigas intumescidas e copiosas, permitiram um salto assombroso. Elas eram mais produtivas que qualquer outro tipo de trigo – pelo menos com água abundante, fertilizantes sintéticos e pouca competição de ervas e insetos. Para assegurar tais condições, o governo indiano subsidiou canais, fertilizantes e a perfuração de poços para irrigação, e forneceu eletricidade gratuita para que a água pudesse ser bombeada até as plantações. Os novos cultivares de trigo espalharam-se pela Ásia, alterando as práticas tradicionais de milhões de lavradores, e logo foram seguidos por novas e “milagrosas” linhagens de arroz. As recentes variedades amadureciam com mais rapidez e permitiam o cultivo de duas safras por ano. Hoje, as safras duplas de trigo, arroz ou algodão são corriqueiras no Punjab, região que, com a vizinha Haryana, forneceu mais de 90% do trigo consumido pelos estados indianos deficientes em cereais.

A revolução verde iniciada por Borlaug nada tinha a ver com as preocupações ecológicas hoje na moda. Com o emprego de fertilizantes sintéticos e de pesticidas para manejo de imensos campos cultivados com um único cereal, prática conhecida como monocultura, esse novo método de exploração industrial da agricultura era a antítese da atual tendência de cultivo orgânico. Em vez disso, William S. Gaud, então responsável pela Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês), cunhou a expressão “revolução verde”, em 1968, contrapondo-a à “revolução vermelha” soviética, na qual trabalhadores, soldados e camponeses famintos se revoltaram com violência contra o governo czarista. A pacífica revolução verde obteve êxito tão extraordinário que Borlaug recebeu, em 1970, o Prêmio Nobel da Paz.

Hoje já se esgotou o milagre no Punjab: o aumento da produtividade está estagnado desde meados da década de 90. A irrigação excessiva provocou a redução dos lençóis freáticos, agora explorados por 1,3 milhão de poços, ao passo que milhares de hectares de terras produtivas tiveram de ser abandonados devido à salinização e ao encharcamento dos solos. Quatro décadas de intenso uso de irrigação, fertilizantes e pesticidas não foram nada benéficas para os campos do Punjab. Tampouco para seus habitantes.

No poeirento vilarejo de Bhuttiwala, no distrito de Muktsar em que vivem 6 mil pessoas, Jagsir Singh, com sua barba comprida e seu turbante azul-cobalto, um dos mais velhos e respeitados da comunidade, revela a extensão dos danos. “Tivemos 49 mortes por câncer nos últimos quatro anos”, conta. “A maioria era gente jovem. A água não presta. Está envenenada e contaminada. Mas as pessoas continuam a beber.”

Seguindo por caminhos de terra estreitos, Singh me conduz até Amarjeet Kaur, uma esguia mulher de 40 anos que por muito tempo extraiu água para uso diário da família, com ajuda de bomba manual, de um poço aberto no solo duro próximo ao grupo de casebres. No ano passado, ela foi diagnosticada com câncer da mama. Tej Kaur, de 50 anos, também está com o mesmo tipo de doença. A cirurgia, conta ela, foi dolorosa, mas não tanto quanto perder o neto de 17 anos por causa de “câncer no sangue” – leucemia.

Não há comprovação de que a doença seja provocada por pesticidas. Mas pesquisadores constataram a presença dessas substâncias no sangue dos agricultores locais, nos lençóis freáticos da região, nas verduras ali consumidas e até no leite das mulheres que amamentam. Tanta gente enferma usa o trem que passa na região de Malwa e que leva ao hospital especializado em câncer de Bikaner, que ele passou a ser conhecido como o “expresso do câncer”. E as autoridades estão de tal modo preocupadas, que destinaram milhões de dólares à construção de estações de tratamento de água com equipamentos de osmose reversa nas áreas mais afetadas.

Para piorar a situação, o custo elevado de fertilizantes e pesticidas resultou no endividamento de agricultores do Punjab. De acordo com um estudo, houve mais de 1,4 mil casos de suicídio entre lavradores de 93 vilarejos de 1988 a 2006. Alguns grupos estimam que o total de suicídios de agricultores no estado, no mesmo período, seja bem maior, algo entre 40 mil e 60 mil casos. Muitos ingeriram pesticidas ou se enforcaram em suas plantações. “O governo sacrificou o povo do Punjab para ter cereais”, comenta Jarnail Singh, professor aposentado no vilarejo de Jajjal.

Nem todo mundo partilha dessa opinião. Rattan Lal, da Universidade de Ohio, formado pela Universidade Agrícola do Punjab em 1963, considera que o abuso – e não o uso – das tecnologias foi a causa dos problemas. Isso inclui o emprego excessivo de fertilizantes, pesticidas e irrigação, assim como a remoção dos resíduos da safra anterior dos campos, eliminando-se dessa forma uma fonte de nutrientes para o solo. “Reconheço que há problemas com a qualidade da água e o esgotamento dos lençóis freáticos”, afirma Lal. “Por outro lado, centenas de milhões de pessoas foram salvas. Pagamos um preço alto em termos da água, mas a alternativa era deixar que milhões de pessoas morressem de fome.”

No que se refere à produção, os benefícios da revolução verde são inegáveis. A Índia não sofreu outro surto de fome desde que Borlaug introduziu suas sementes especiais, ao mesmo tempo que a produção mundial de cereais mais que dobrou. Segundo alguns pesquisadores, apenas o aumento na capacidade produtiva dos arrozais seria responsável pela existência de mais 700 milhões de pessoas no planeta.

Muitos cientistas e agricultores acreditam que a solução para a atual crise de alimentos está em outra revolução, dessa vez baseada em recentes descobertas genéticas. Os pesquisadores já conhecem a sequência de quase todos os 50 mil e tantos genes do milho e da soja, e “aplicam esse conhecimento de maneiras inimagináveis há apenas quatro ou cinco anos”, diz Robert Fraley, diretor de tecnologia da empresa Monsanto. Fraley está certo de que a modificação genética que permite a melhoria de plantas pela introdução de características benéficas de outras espécies permitirá criar novas variedades de maior rendimento, menor uso de fertilizantes e aumento na tolerância das plantas a períodos de seca.

A África é o continente onde surgiu o Homo sapiens e, com seus solos esgotados, chuvas irregulares e população crescente, talvez ofereça um vislumbre do futuro de nossa espécie. Por várias razões – falta de infraestrutura, corrupção, mercados inacessíveis -, a revolução verde passou ao largo do continente. Na realidade, a produção agrícola per capita diminuiu na África subsaariana entre 1970 e 2000 enquanto aumentou a população, o que resultou em um déficit alimentar de 10 milhões de toneladas anuais de grãos, em média. Hoje a África abriga um quarto das pessoas que passam fome no mundo.

Um país minúsculo e sem saída para o mar, o Malauí, batizado de “o coração caloroso da África” por um esperançoso setor de turismo, também está no coração esfomeado do continente. Onde vive uma das mais pobres e densas nações africanas, a maioria dos malauianos é constituída de lavradores de milho que mal subsistem com menos de 2 dólares por dia. Em 2005, as chuvas deixaram de cair, e um terço de seus 13 milhões de habitantes sobreviveu graças à ajuda humanitária. O presidente Bingu wa Mutharika declarou que não havia sido eleito para governar uma nação de mendigos. Quando fracassou em convencer o Banco Mundial a ajudá-lo a subsidiar projetos similares à revolução verde, Bingu, como é conhecido, decidiu gastar 58 milhões de dólares do Tesouro Nacional para colocar sementes híbridas e fertilizantes nas mãos dos agricultores pobres. O Banco Mundial associou-se ao esforço e convenceu Bingu a concentrar o subsídio nos agricultores mais pobres. Cerca de 1,3 milhão de famílias receberam cupons que lhes permitiam adquirir 3 quilos de sementes híbridas de milho e dois sacos de 50 quilos de fertilizante por um terço do preço de mercado.

O que ocorreu em seguida foi chamado de “milagre malauiano”. As sementes boas e um pouco de fertilizante – assim como a volta da chuva – ajudaram os agricultores a colher safras extraordinárias nos dois anos seguintes. A safra de 2007 foi estimada em 3,44 milhões de toneladas, um recorde nacional. “Passaram de um déficit de 44% para um superávit de 18%, dobrando a produção”, comenta Pedro Sanchez, da Universidade Colúmbia. “No ano seguinte, houve um excedente de 52% e exportaram milho para o Zimbábue. Foi uma mudança dramática.”

Tão dramática, na verdade, que despertou interesse crescente para a importância do investimento agrícola no combate à pobreza e à fome em lugares como o Malauí. Em outubro de 2007, o Banco Mundial divulgou um relatório repleto de críticas no qual concluía que o próprio banco, os doadores internacionais e os governos africanos haviam feito bem menos do que podiam para ajudar os agricultores pobres do continente, tendo negligenciado os investimentos no setor agrícola ao longo dos 15 anos anteriores.

O programa de subsídios no Malauí é parte de um movimento mais amplo para introduzir na África a revolução verde, ainda que tardiamente. Desde 2006, as fundações Rockefeller e Bill e Melinda Gates contribuíram com quase meio bilhão de dólares para financiar a Aliança para uma Revolução Verde na África, com o objetivo principal de desenvolver programas de melhoramento genético nas universidades africanas e fazer chegar fertilizante às lavouras. Pedro Sanchez e o economista Jeffrey Sachs criaram exemplos concretos dos benefícios de tais investimentos em 80 pequenos vilarejos, agrupados em uma dúzia de “Vilas do Milênio” distribuídas nas áreas mais afetadas pela fome na África. Com ajuda de músicos e atores famosos, Sanchez e Sachs gastam 300 000 dólares por ano em cada vilarejo. Isso equivale a um terço do PIB do Malauí em termos proporcionais – o que levou muita gente a se perguntar sobre a viabilidade de tal programa no longo prazo.

Baixinha, magra e rija, Phelire Nkhoma é a responsável por implantar o projeto agrícola em uma das duas Vilas do Milênio no Malauí – abrangendo sete vilarejos com um total de 35 mil habitantes. Ela descreve o programa enquanto seguimos em uma caminhonete nova da ONU desde que saímos de seu escritório, no distrito de Zomba, através de campos escurecidos por queimadas e pontilhados com as copas violáceas dos jacarandás. Os moradores dos povoados recebem de graça as sementes híbridas e o fertilizante – em troca, devem doar três sacos de milho, na época da colheita, para um programa de alimentação escolar. Também recebem mosquiteiros e medicamentos antimaláricos. Cada Vila do Milênio é dotada de posto de saúde, celeiro para armazenar a colheita e poços de água boa para beber no raio de 1 quilômetro de cada casa. Boas escolas primárias, estradas melhoradas e acesso à rede de eletricidade e à internet serão instalados nesses locais, e também no vilarejo Madonna, que fica mais ao norte. “Madonna?”, pergunto. “É isso mesmo. Soube que ela se divorciou de seu último marido. É verdade?”

O clima de prosperidade é evidente na Vila do Milênio, onde Nkhoma mostra casas de alvenaria recém-construídas com tetos brilhantes de metal corrugado, um celeiro repleto de sementes e fertilizantes e, sob a sombra de uma árvore, uma centena de moradores locais a ouvir um funcionário de banco explicar como solicitar empréstimo agrícola. Fazem fila em um guichê na janela do caminhão blindado do Banco Internacional do Malauí. Cosmas Chimwara, vendedor de verduras de 30 anos, é um deles. “O negócio com as leguminosas vai bem”, conta. “Tenho três bicicletas, uma TV e um celular, e uma casinha melhor.”

Histórias assim são motivo de orgulho a Faison Tipoti, o líder comunitário que ajudou a implantar o projeto. Ficou para trás o tempo em que a gente passava os dias a vagar e mendigar comida para seus filhos com barrigas inchadas e doentes. Ele volve os olhos para as crianças que se divertem enquanto lavam roupa e buscam água no poço do vilarejo. “Com a chegada do projeto, tudo é água limpa e fresca”, diz Tipoti.

Mas seria uma retomada da revolução verde – com o pacote de fertilizantes sintéticos, pesticidas e irrigação, reforçado agora por sementes geneticamente modificadas – a resposta para a crise mundial de alimentos? No ano passado, um estudo intitulado “Avaliação Internacional do Conhecimento, Ciência e Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento” concluiu que o aumento na produção agrícola pelos avanços científicos e tecnológicos nos últimos 30 anos fracassou em melhorar o acesso aos alimentos pelos pobres do planeta. Realizado ao longo de seis anos, por iniciativa do Banco Mundial e da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e com 400 especialistas, o estudo sugeriu uma mudança de paradigma na agricultura, em favor de práticas sustentáveis e propícias ao ambiente capazes de beneficiar os 900 milhões de pequenos agricultores do mundo, e não apenas o agronegócio.

O legado da revolução verde, solos contaminados e aquíferos esgotados, é um dos motivos para buscar novas estratégias. E o mesmo se aplica ao que Michael Pollan, da Universidade da Califórnia em Berkeley, denomina o “calcanhar de aquiles” dos atuais métodos da revolução verde: a dependência aos combustíveis fósseis. O gás natural é uma das matérias-primas para a fabricação de fertilizantes de nitrogênio.

Até agora não se concretizaram os avanços da genética que iriam libertar as safras da revolução verde da necessidade vital de irrigação e fertilizantes. A criação de plantas que podem fixar o próprio nitrogênio ou que sejam resistentes a secas “revelou-se algo bem mais difícil do que se imaginava”, diz Pollan. Segundo Robert Fraley, da Monsanto, até 2012 sua empresa vai comercializar sementes de milho resistentes a secas no mercado americano. Mas o rendimento será apenas de 6% a 10% maior que o das plantações normais nas mesmas condições. É por isso que já se nota mudança em favor de outros projetos, mais modestos e hoje carentes de financiamento, dispersos pela África e pela Ásia. Algumas pessoas chamam isso de agroecologia; outras, de agricultura sustentável. Mas a ideia subjacente é revolucionária: precisamos deixar de nos concentrar apenas na melhoria do rendimento das plantações, e passar a levar em conta o impacto ambiental e social na produção de alimentos.

Vandana Shiva é uma física nuclear que virou agroecologista e tornou-se a crítica mais incisiva da revolução verde na Índia. “Para mim, isso não passa de monocultura mental”, diz ela. “Eles olham apenas para o rendimento do trigo e do arroz, mas a diversidade de alimentos está acabando. Havia 250 variedades de safras no Punjab antes da revolução verde.” O argumento de Vandana é que os cultivos em pequena escala e biologicamente diversificados são capazes de produzir mais alimentos com menos insumos de petróleo. Suas pesquisas mostraram que o uso de compostagem, no lugar de fertilizantes derivados de gás natural, aumenta a matéria orgânica no solo, capturando o carbono e preservando a umidade – duas vantagens cruciais para agricultores que se defrontam com mudanças climáticas.

Na região norte do Malauí, há um projeto que tem obtido resultados como os das Vilas do Milênio, mas a um custo bem menor. Não há sementes híbridas de milho nem fertilizantes gratuitos e tampouco novas estradas em Ekwendeni. Ali, o projeto Solos, Alimentos e Comunidades Saudáveis (SFHC, na sigla em inglês) distribui sementes de leguminosas, receitas e conselhos técnicos para cultivo de plantas nutritivas, como amendoim, guando e soja, que melhoram o solo ao fixar o nitrogênio, além de enriquecer a dieta das crianças. O programa teve início em 2000, no Hospital Ekwendeni, cujos funcionários recebiam número elevado de pacientes com desnutrição. Pesquisas indicaram que isso se devia à monocultura de milho, pois o esgotamento do solo e o alto preço do fertilizante haviam reduzido a produtividade dos pequenos lavradores.

O motor da velha caminhonete só pega no tranco, mas logo Boyd Zimba, o vice-coordenador do projeto, e Zacharia Nkhonya, seu supervisor de segurança alimentar, começam a falar sem parar sobre o que consideram as desvantagens do “milagre malauiano”. “Para começar, o subsídio ao fertilizante não pode durar muito”, diz Nkhonya, um homem atarracado e sempre sorridente. “Depois, não beneficia a todos. E, terceiro, é concedido só uma vez por ano, ao passo que as leguminosas requerem prazos longos” – os solos vão melhorando a cada ano, ao contrário do que ocorre com o uso de fertilizantes.

No minúsculo povoado de Encongolweni, lavradores do SFHC nos recebem com uma canção que fala de pratos de soja e guando. Nos acomodamos no local de reuniões, em uma atmosfera que lembra uma cerimônia religiosa, e eles nos contam como o cultivo de leguminosas mudou sua vida. A história de Ackim Mhone é típica. Ao incorporá-las no cultivo em rotação, ele dobrou o rendimento de sua pequena plantação de milho e, ao mesmo tempo, reduziu pela metade o uso de fertilizantes. “Só isso já deu para mudar a vida da minha família”, comenta Mhone, que reformou sua casa e comprou animais. Mais tarde, Alice Sumphi, uma lavradora de 67 anos e sorriso travesso, dança orgulhosa em seu lote onde jovens tomateiros chegam à altura dos joelhos. De acordo com pesquisadores canadenses, depois de oito anos, as crianças de mais de 7 mil famílias do projeto apresentaram significativo aumento de peso – uma convincente demonstração do vínculo, no Malauí, entre a boa saúde do solo e a boa saúde da comunidade.

E esse é o motivo pelo qual Rachel Bezner Kerr, a coordenadora de pesquisa do projeto, está alarmada com o fato de fundações ricas estimularem nova revolução verde na África. “Acho isso muito perturbador”, diz. “Pois faz com que os agricultores dependam de insumos dispendiosos produzidos em outras regiões e que proporcionam lucros a grandes empresas, em vez de incentivar métodos agroecológicos que empregam recursos e conhecimento locais. Não creio que essa seja a solução.”

Seja qual for o modelo que vai predominar no futuro – a agricultura como uma arte ecológica e diversificada, ou como um setor de alta tecnologia ou ainda como uma mescla das duas -, o desafio de proporcionar comida suficiente a 9 bilhões de pessoas até 2050 é assustador. Hoje, 2 bilhões vivem nas partes mais secas do globo, e estima-se que as mudanças climáticas reduzirão ainda mais a produtividade agrícola justamente nessas regiões. Por maior que seja o potencial dessas terras, as plantações continuarão a precisar de água. E, em um futuro não muito distante, todo ano poderá ser de seca em grande parte do planeta.

Estudos recentes sobre o clima mostram que ondas de calor fortes, como aquela que ressecou a Amazônia em 2005, devem se tornar corriqueiras nos trópicos e nos subtrópicos até o fim deste século. As geleiras do Himalaia, que hoje proporcionam água doce para milhões de pessoas, animais e plantações na China e na Índia, derretem com maior rapidez e podem desaparecer por completo até 2035. Na pior das hipóteses, a produção de alguns cereais poderia cair de 10% a 15% no sul da Ásia até 2030. As projeções para o sul da África são ainda mais alarmantes. Em uma região já devastada pela escassez de água e pela insegurança alimentar, a crucial safra de milho poderia ter uma queda de 30% – ou mesmo de 47%, no cenário mais grave. Ao mesmo tempo a população continua a aumentar, com 2,5 novas bocas para alimentar nascendo a cada segundo. Isso significa mais 4,5 mil crianças no tempo que se gasta para ler este artigo.

O que nos leva de volta a Malthus.

Em um frio dia de outono que reanimou a cor no rosto dos londrinos, dou um pulo até a British Library a fim de espiar a primeira edição do livro que ainda gera debate tão acalorado. O Ensaio sobre o Princípio da População, de Malthus, mais parece um manual de ciência do ciclo secundário. Por meio da prosa incisiva e límpida soa a voz de um humilde sacerdote paroquial que, acima de tudo, tinha a esperança de que suas conclusões se comprovassem equivocadas.

“Aqueles que afirmam que Malthus está errado em geral não o leram”, comenta o professor de demografia Tim Dyson. “Ele não assumiu perspectiva diferente da adotada por Adam Smith em A Riqueza das Nações. Nenhuma pessoa sensata coloca em questão a ideia de que as populações têm de sobreviver com os recursos disponíveis. E que a capacidade da sociedade para aumentar os recursos é limitada.”

Embora os ensaios de Malthus ressaltassem os “controles positivos” sobre o crescimento populacional constituídos por fome, doenças e guerra, seus “controles preventivos” talvez tenham sido mais relevantes. O aumento da força de trabalho, explicou Malthus, reduz os salários, e isso tende a fazer com que as pessoas adiem o casamento até que tenham condições de manter uma família. O adiamento dos casamentos reduz a taxa de natalidade e cria um controle eficaz do crescimento demográfico. Hoje está comprovado que esse é o mecanismo básico que regulou o crescimento da população na Europa Ocidental por cerca de 300 anos antes da Revolução Industrial – o que configura resultado muito bom para qualquer cientista social, comenta Dyson.

No entanto, quando a Grã-Bretanha lançou nova nota de 20 libras esterlinas, Adam Smith foi colocado no verso, e não T.R. Malthus. Ele não combina com o espírito atual. Na verdade, não queremos pensar muito sobre limites. Porém, agora que nos aproximamos dos 9 bilhões de pessoas, todas reivindicando as mesmas oportunidades e as mesmas condições de vida, há enorme risco em ignorarmos os limites.

Nenhum dos grandes economistas clássicos previu o advento da Revolução Industrial ou a transformação da economia e da agricultura mundiais. A energia barata e acessível do carvão – e, depois, outros combustíveis fósseis – desencadeou maior aumento de alimentos, riqueza individual e pessoas que o mundo já testemunhou, permitindo que a população da Terra crescesse sete vezes desde a época de Malthus. Mesmo assim, a fome e a desnutrição continuam a nos afligir, tal como Malthus havia previsto.

“Anos atrás, trabalhei com um demógrafo chinês”, conta Dyson. “Um dia ele me chamou a atenção para os caracteres chineses sobre a porta de sua sala, e que formavam a palavra ‘população’. Era constituída de dois ideogramas, um para ‘pessoa’ e outro para ‘boca aberta’. Fiquei impressionado. No fim das contas, é preciso haver equilíbrio entre população e recursos. E quanto a essa noção de que podemos continuar a crescer para sempre, bem, ela é ridícula.”Talvez lá no fundo de sua cripta, na abadia de Bath, Malthus esteja balançando um dedo ossudo e dizendo: “Não digam que não avisei”.
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Publicado em 06/2009
http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-111/crise-alimentos-473007.shtml

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