A política macroeconômica: pragmatismo e flexibilidade
Os prognósticos sombrios apontados para o Brasil na época da crise financeira mundial de 2008 não se materializaram. O que se concretizou, é a visão de uma política macroeconômica multifacetada, pragmática, e orientada pelo equilíbrio dos interesses, e sobretudo pela compreensão de que uma base mais ampla de mercado interno ajuda todos os setores, inclusive o setor exportador, que teve como compensar a redução dos mercados extenos com o consumo interno. E sedimentou-se a idéia de que um Estado atuante é simplesmente necessário. O artigo é de Ladislau Dowbor.
Ladislau Dowbor
O economista Ladislau Dowbor elaborou um documento intitulado “Brasil: um outro patamar - Propostas de estratégia”, que incorpora o cerne das discussões travadas no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) ao longo dos últimos cinco anos, com objetivo de esboçar uma “Agenda Brasil” para a década que se inicia.
O documento busca desenhar em grandes traços o novo referencial, tanto nacional como internacional, que incide sobre os rumos desta década. “O Brasil encontrou o seu rumo ao transformar o seu maior desafio, a pobreza, e a falta de capacidade de compra que a acompanha, em vetor de expansão do conjunto da economia. A distribuição, ao estimular a demanda, é que faz crescer o bolo”, diz Dowbor.
A Carta Maior está publicando quatro dos principais capítulos deste trabalho, com o link para a versão integral do texto. Publicamos hoje a terceira parte: "A política macroeconômica: pragmatismo e flexibilidade"
A política macroeconômica: pragmatismo e flexibilidade
Um dos pontos mais fortes da ampliação das perspectivas de desenvolvimento está na estabilização de um modelo de gestão macroeconômica. Neste plano também estamos frente a um novo patamar. Trata-se aqui do equilíbrio nas políticas de salários, de preços, de crédito, de câmbio, de previdência, de investimentos e de arrecadação. Tecnicamente complexa, e foco de pressões constantes, a política macroeconômica no Brasil obedecia a uma visão neoliberal sofisticada em termos teóricos, mas que resultava ao fim e ao cabo em baixo crescimento e injustiça social, sempre com tom de seriedade e austeridade. A contenção salarial e os altos juros seriam justificados como instrumentos de proteção do povo contra a inflação. Esta área da economia sofre de um pecado original: poucas pessoas a entendem, e encontra-se portanto pouco sujeita a escrutínio democrático. E o passado inflacionário deixou marcas no inconsciente coletivo.
Em termos resumidos, a política adotada pode se resumir na expansão da economia pela inclusão progressiva da base da pirâmide social, o que aumenta a demanda agregada, o que por sua vez gera emprego, investimentos e maior demanda, levando o conjunto a uma espiral virtuosa de desenvolvimento. O nó da política macroeconômica está no equilíbrio das diferentes variáveis, tanto em termos de montantes como de ritmo. A política adotada caracterizou-se por uma grande flexibilidade e rapidez de resposta às mudanças das tendências nacionais e internacionais, uma boa dose de pragmatismo, e a busca de equilíbrios entre os interesses envolvidos.
Em termos práticos, a fase inicial, de 2003 a 2005, caracterizou-se por reajustes macroeconômicos ortodoxos, visando tranquilizar os agentes econômicos quanto à estabilidade das regras do jogo, cumprimento dos compromissos financeiros, contenção das pressões inflacionárias. Paralemamente, iam se construindo os instrumentos de gestão das políticas sociais, que têm como recurso escasso não o dinheiro, mas a capacidade administrativa, que se desenvolve mais lentamente. As minireformas tributária e previdenciária permitiram por sua vez estabilizar as contas. O bom preço das commodities e a diversificação dos acordos comerciais permitiram a redução da vulnerabilidade externa.
A segunda fase, de 2006 a 2008, já se caracteriza pela articulação das políticas em torno a uma dinâmica acelerada de crescimento pela inclusão, lançando as bases das dinâmicas atuais. O cadastro unificado das famílias pobres, a unificação dos programas sociais no Bolsa Família, a forte progressão do salário mínimo (que envolve também o aumento das aposentadorias), o apoio à agricultura familiar (Pronaf), a expansão do crédito (crédito consignado, financiamentos do BNDES e de outros bancos do Estado), a gradual expansão dos investimentos, geraram uma dinâmica de consumo na base da sociedade, e um reforço de investimentos no setor privado.
O resultado foi uma forte expansão do emprego formal, com mais demanda. Em outros termos, o Estado assumia a sua função de indutor do desenvolvimento. A maior demanda não gerou inflação, na medida em que a capacidade ociosa do aparelho produtivo permitiu rápida expansão da oferta. A expansão do gasto público foi coberta pela maior arrecadação que resultou do crescimento econômico (passou de 5% em 2008) e da maior formalização da economia, permitindo tanto manter os compromissos com a dívida como expandir as políticas sociais.
A fase da crise financeira de 2008 submeteu esta política a dura prova. A amplitude da crise e o pânico internacional gerado provocaram no país o travamento do crédito, a suspensão dos investimentos privados, a transferência de recursos das filiais brasileiras de grupos estrangeiros para para salvar as matrizes (35 bilhões de dólares só em 2008), e um clima geral de insegurança. Diante da queda da arrecadação do Estado, a visão ortodoxa seria de contenção dos gastos do governo, com um ajuste fiscal contracionista. Com a visão desenvolvimentista já estabilizada na etapa imediatamente anterior, o governo optou por um conjunto de medidas anticíclicas, respondendo de forma rápida e diversificada aos diversos desequilíbrios à medida que se manifestavam.
Manteve a expansão do salário mínimo (12% em 2009) gerando expectativa positiva no mercado; assegurou desonerações tributárias e incentivos nos setores críticos; utilizou as reservas cambiais para o financiamento das exportações (o financiamento externo havia estancado totalmente); reduziu o compulsório (que aliás os bancos comerciais utilizaram para comprar títulos do governo, em vez de fomentar a economia); reduziu o financiamento da dívida para priorizar o apoio às atividades produtivas; utilizou os bancos estatais para estimular a economia através de um amplo espectro de linhas de crédito; as alíquotas do imposto de renda foram subdivididas ao se constatar o aperto da crise nos setores da classe média baixa. Os programas sociais não só não foram reduzidos, como expandidos, e a dinamização da construção no programa Minha Casa Minha Vida passou a gerar atividades e empregos de forma muito capilar no conjunto da economia.
Os prognósticos negros apontados na época não se materializaram. O que se concretizou, é a visão de uma política macroeconômica multifacetada, pragmática, e orientada pelo equilíbrio dos interesses, e sobretudo pela compreensão de que uma base mais ampla de mercado interno ajuda todos os setores, inclusive o setor exportador, que teve como compensar a redução dos mercados extenos com o consumo interno. E sedimentou-se a idéia de que um Estado atuante é simplesmente necessário. Hoje o país passa a enfrentar os desafios estruturais sabendo que a capacidade de gestão macroeconômica passou as provas, e para o setor privado que precisa estar tranquilo quanto às regras do jogo, isto representa un novo patamar.
Independentemente da crise financeira, um outro vetor de política econômica foi se construindo e está se tornando central, que são os grandes investimentos de infraestrutura tão longamente adiados. O Programa de Aceleração do Crescimento, o Programa de Desenvolvimento Produtivo, a expansão dos investimentos da Petrobrás, o PAC II, e também o Plano de Desenvolvimento da Educação, os planos de generalização de acesso à banda larga, de ordenamento do uso da água e numerosos outros estão ao mesmo tempo dinamizando os investimentos e mantendo a conjuntura elevada, o que facilita todos os ajustes, e introduzindo nos mais diversos setores uma visão estrutural, sistêmica, com resgate de mecanismos de planejamento e de longo prazo. Isto tensiona a capacidade gestora do Estado, que já não desempenhava tais atividades, e coloca novos desafios de modernização administrativa.
Se há uma visão teórica a resgatar, é que os equilíbrios macroeconômicos são dinâmicos, que é possível gerar maior demanda sem excessiva pressão inflacionária, aumentar o fomento do Estado sem gerar déficit irresponsável, encontrar um novo equilíbrio entre mercado inerno e mercado externo sem dramas cambiais, que é possivel colocar condições à entrada de capitais especulativos sem ser declarado “controlador” pelo mercado especulativo internacional e assim por diante. Sobretudo, é possível reduzir os desequilíbrios sociais e regionais sem prejudicar os setores mais abastados e as regiões mais ricas, ao assegurar que todos se beneficiam, mas os de baixo em ritmo mais acelerado. O bom senso funciona. Não só a boa maré levanta todos os barcos, como o Estado pode ser providencial em assegurar que a maré se mantenha.
A íntegra do documento
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