Quatro anos após o início da maior crise financeira desde a Grande Depressão, a estabilidade financeira mundial ainda está por ser garantida e muitos desafios políticos continuam a ser enfrentados. De fato:
- A recuperação mundial não está avançando a um ritmo equilibrado;
- Persistem grandes desequilíbrios no mundo;
- Surgiram amplas preocupações quanto à sustentabilidade da dívida pública;
- Vínculos entre os balanços patrimoniais frágeis, de governos e bancos, produziram novas tensões nos mercados financeiros, afetando particularmente a área do euro.
O que aconteceu? As causas da crise financeira mundial são, agora, bem compreendidas.
A partir de meados dos anos 1990, teve início uma década de crescimento econômico sustentado e baixa inflação - um período que tornou-se conhecido como a "Grande Moderação". A globalização favoreceu condições macroeconômicas benignas, criando a ilusão de um novo paradigma na economia. Baixa inflação nos preços ao consumidor aliviou a pressão sobre os bancos centrais - especialmente o Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) - no sentido de apertar a política monetária e frear o crescimento do crédito.
Retrospectivamente, fica claro que teria sido mais do que justificado adotar uma "visão prudente"
Ao invés de se traduzir em inflação nos preços ao consumidor, a expansão do crédito decorrente de ampla liquidez e juros baixos resultaram em rápida alta nos preços dos ativos. Em particular, os juros muito baixos nos EUA promoveram rápida expansão do crédito ao consumidor e do financiamento habitacional, alimentando uma bolha imobiliária generalizada.
Falhas de regulamentação e fiscalização ampliaram esses desdobramentos. Na verdade, diversos fatores relevantes explicam a magnitude da bolha financeira e as instabilidades subsequentes:
- Ampla desregulamentação financeira;
- Componentes pró-cíclicos em arcabouços regulatórios;
- E, por fim, a falta de transparência nos mercados.
A acumulação de desequilíbrios na economia americana espelhou o acúmulo de grandes desequilíbrios no mundo. Superávits em conta corrente em países emergentes, principalmente na China, foram investidos em títulos do governo dos EUA e em outros ativos de baixo risco, ampliando mais a liquidez e deprimindo os rendimentos. Isso tem incentivado os investidores a buscar rendimentos mais altos em ativos de maior risco.
Na Europa, o mais significativo foi o surgimento da União Econômica e Monetária (UME), cuja perspectiva de criação fomentou uma rápida convergência das taxas de juro para os níveis vigentes na Alemanha, a partir de meados dos anos 1990.
Os paises aspirantes a membros da zona do euro - especialmente aqueles com piores históricos de estabilidade - beneficiaram-se, inicialmente, de um ciclo virtuoso entre convergência nominal e a perspectiva de participação. Os esforços de consolidação fiscal e inflação mais baixa elevaram a probabilidade de participação na zona do euro (atendendo os critérios de Maastricht). A maior probabilidade de adesão facilitou a estabilidade do câmbio, a convergência dos juros para os níveis mais baixos e a melhoria dos balanços orçamentários.
Resta ver se o novo arcabouço de vigilância vai garantir o bom funcionamento da região
As ordens de grandeza foram notáveis: os juros de longo prazo em Portugal caíram de mais de 12%, em abril de 1995, para cerca de 4% em dezembro de 1998, às vésperas de o país adotar o euro. As despesas com juros caíram para menos da metade, passando de 5,6% do PIB em 1995 para 2,4% em 2005. Evoluções similares ocorreram em outros países, como Itália, Irlanda, Espanha e, com algum atraso, a Grécia.
O alívio nas restrições de liquidez resultou em grande aquecimento no crédito ao setor privado e em menor poupança. O consumo de bens duráveis pelas famílias e os investimentos em habitação dispararam e a alavancagem das empresas aumentou significativamente. Grandes déficits em conta corrente surgiram como contrapartida ao crescimento dos gastos privados.
Esse "novo mundo" de juros baixos e financiamento abundante parecia oferecer um almoço grátis aos países convergentes. Mas surgiram vários desequilíbrios, que assumiram diferentes formas:
- Em países como Portugal ou Grécia, os desequilíbrios fiscais tornaram-se um grande problema. A poupança decorrente de juros mais baixos e de receitas resultantes do crescimento acelerado foi usada para financiar políticas expansionistas. Quando a convergência dos juros foi concluída e o impacto inicial do euro sobre o crescimento desapareceu, ficou evidente a fragilidade das políticas fiscais. Além disso, gargalos estruturais decorrentes de falta de competição e o peso excessivo do setor público contribuíram para a expansão excessiva dos bens não comercializáveis, prejudicando a competitividade e agravando desequilíbrios externos.
- Em países como a Espanha e a Irlanda, as políticas fiscais foram mais prudentes. Mas surgiu uma bolha no mercado imobiliário. Na Irlanda, o setor financeiro inchou.
À medida que a crise financeira começou a manifestar-se, em meados de 2007, e depois progrediu até transformar-se em recessão mundial, a reação das autoridades econômicas em todo o mundo foi disponibilizar enorme volumes de liquidez pelos bancos centrais, paralelamente a uma enorme expansão fiscal, além de os governos terem assumido ou garantido as dívidas dos bancos. O objetivo era atenuar o impacto da crise sobre a produção e o emprego e evitar uma crise generalizada que poderia assemelhar-se à de 1929. A consequência foi uma deterioração no balanço patrimonial do setor público.
As preocupações com a sustentabilidade, especialmente n os países onde a margem de manobra era mais limitada, nos levaram à terceira fase da crise, onde estamos agora: a crise da dívida soberana, que até agora afetou principalmente as economias periféricas da área do euro.
Como explicar o que aconteceu? Como déficits em conta corrente elevados persistiram em alguns países da área do euro sem questionamentos?
Em primeiro lugar, não se pode ignorar que a zona do euro teve um grande impacto sobre a formação de expectativas. Muitos economistas e autoridades afirmavam que os desequilíbrios em conta corrente eram o resultado esperado de uma integração mais profunda entre os países com diferentes níveis de desenvolvimento econômico. Em uma união monetária, um déficit em conta corrente que reflita o balanço financeiro do setor privado não seria motivo de preocupação. A monitoração do risco de crédito asseguraria adequada determinação do preço de riscos e não haveria desequilíbrio macroeconômico.
Essa visão encontrou apoio em previsões na teoria ortodoxa. Em um modelo neoclássico de crescimento, a queda de juros causada pela redução do prêmio de risco em um país resulta em maior consumo e estimula o investimento. A perturbação inicial também causa o aumento dos preços de bens não comercializáveis (apreciação do câmbio real) e aumento dos salários reais.
O crescimento potencial elevado não se concretizou, pois o boom de investimentos concentrou-se, em grande parte, em investimentos não produtivos (construção civil) e logo foi revertido.
Com efeito, uma explicação alternativa para o ajuste dos países convergentes à UME pode ser obtida com base em um modelo macroeconômico intertemporal clássico. Esse modelo ilustra a importância dos efeitos de substituição intertemporal no consumo que dominou a UME nos primeiros anos. Também nesse modelo, o processo de ajuste, que acaba sendo deflagrado pelo acumulo de dívida externa, é lento e benigno.
De uma perspectiva de política econômica, os pressupostos subjacentes à abordagem benigna revelaram-se irrealistas e ilusórios. Com efeito, o arcabouço conceitual não contempla realidades fundamentais da vida - como complexos mecanismos de formação de expectativas, a possibilidade de inadimplência, a ausência de fricções nos mercados de produtos e de mão de obra ou comportamento fiscal imprudente.
Expectativas otimistas sobre perspectivas de crescimento futuro e miopia, fracas instituições nacionais e fricções reais e financeiras deveriam ter se constituído para intervenção na política econômica visando atenuar o padrão de "expansão acelerada seguida de colapso brusco" decorrente da integração monetária.
Os amortecedores, que levariam ao menor endividamento do setor público e de maior solidez de capital no setor bancário, teriam colocado as economias convergentes em posição mais sólida para enfrentar a crise financeira. Além disso, uma abordagem mais ambiciosa e coerente a uma reforma estrutural teria deixado essas economias melhor equipadas para enfrentar os desafios da globalização e do envelhecimento populacional. Deveríamos inferir que somente a política interna e falhas institucionais devem ser responsabilizadas pela atual situação na Europa?
A resposta é negativa. Embora políticas internas inadequadas e irresponsáveis expliquem onde estamos, é preciso reconhecer que uma arquitetura incompleta para a zona do euro é fundamental para explicar a situação atual.
O modelo de governança econômica da zona do euro repousa em quatro princípios fundamentais:
- Soberania fiscal: os Estados membros mantêm responsabilidade por sua política fiscal, sujeita a regras e procedimentos comuns;
- Inadimplência desconsiderada: a possibilidade de reestruturação controlada de dívida soberana não foi considerada no modelo;
- Socorro desconsiderado: não foi estabelecido nenhum mecanismo de gestão de crises;
- Saída desconsiderada: não é contemplada a possibilidade de um membro abandonar o euro.
Os responsáveis pela elaboração do Tratado de Maastricht estavam conscientes de que não poderíamos depender das forças de mercado para assegurar disciplina e a correção de desequilíbrios. Episódios históricos mostraram que os mercados financeiros tendem a ser lentos e frouxos na penalização de prodigalidade em tempos normais, e podem, repentinamente, virar e deflagrar movimentos exagerados durante crises.
A fim de conter o risco moral e prevenir turbulências, o Pacto de Estabilidade e Crescimento foi acordado como um complemento à arquitetura de Maastricht. O Pacto estabelece regras e procedimentos orçamentários para reforçar a disciplina fiscal em nível nacional. Com o Pacto, pretendeu-se evitar erros graves de política fiscal mediante monitoração e pressão dos Estados-membros, bem como por meio de ameaças de sanções.
No entanto, a implementação do Pacto foi frouxa nos primeiros anos da UME. Tensões surgiram no início de 2000, e em novembro de 2003, quando ações deveriam ter sido tomadas contra a França e a Alemanha, o Conselho Ecofin decidiu não agir, prevalecendo sobre a Comissão Europeia. Essa indisposição para aplicar as regras foi um "pecado mortal": um recado foi enviado aos membros da área do euro, dizendo que o Pacto "não era para valer".
De modo mais geral, eu diria que a débil governança econômica na área do euro teve três consequências importantes:
- Primeiro, políticas fiscais domésticas inadequadas foram toleradas, resultando em situações orçamentárias insustentáveis em alguns países e tensões na condução da política monetária única;
- Segundo, atenção insuficiente a perdas de competitividade e ao acúmulo de desequilíbrios em conta corrente na zona euro;
- Terceiro, e provavelmente mais importante, a correlação entre a capacidade do setor financeiro e dos Estados soberanos de obterem financiamento foi, em larga medida, ignorada.
Por um lado, o mercado para captação de recursos financeiros estava extremamente integrado, na área do euro (isto é, o mercado financeiro de curto prazo e o mercado de dívida soberana); por outro lado, o controle proprietário de bancos e a concessão de crédito pelos bancos continuaram a ser operados em ´âmbito nacional. O fato de o sistema bancário e os Estados soberanos compartilharem as mesmas fronteiras implicava que sua capacidade de tomar empréstimos apoiava-se no mesmo conjunto de fundamentos. Essa interdependência acabou por ser uma importante fonte de risco macrossistêmico na área do euro.
A crise da dívida soberana trouxe para o primeiro plano as falhas na governança econômica da área do euro e expôs a vulnerabilidade dos Estados da área do euro a mudanças na percepção de riscos soberanos nos mercados.
Com efeito, quando um país tem a sua moeda em livre flutuação, uma perda de confiança do mercado traduz-se em uma onda de vendas de títulos, que dispara rendimentos mais elevados e desvalorização cambial, deixando praticamente não afetadas as ofertas monetária e de crédito ao setor privado. Além disso, o banco central nacional funciona como um emprestador de última instância.
Por isso, os investidores não podem precipitar uma crise de liquidez capaz de impor ao país uma posição inadimplente.
Em contraste, para um país pertencente a uma união monetária, uma perda de confiança e a resultante onda de vendas de seus títulos implica não apenas rendimentos mais elevados, mas uma escassez de liquidez, o que pode facilmente transformar-se em problemas de solvência.
A administração de crises pela UE não foi eficaz no sentido de restaurar a confiança do mercado. Embora medidas rápidas e resolutas tenham sido tomadas para fortalecer a arquitetura financeira da UE, a União tem ficado correndo "atrás da curva" no enfrentamento da crise da dívida soberana. Como resultado, o BCE tem sido confrontado com a inevitabilidade de desempenhar um papel corretivo, testando os limites de sua missão.
O que precisamos fazer? Conforme mencionado, as raízes da crise, tanto da crise financeira mundial como de suas ramificações na área do euro, são agora compreendidas.
A questão a considerar, agora, é o que fazer. Medidas devem ser tomadas em nível nacional como no nível da UE. Para serem bem sucedidas, as medidas precisam ser coerentes, tanto no que diz respeito a sua arquitetura como ao momento inaugural de sua vigência.
Em nível nacional, é claro que a prioridade máxima deve ser a restauração da sustentabilidade da dívida pública, aumentando a poupança doméstica e melhorando crescimento potencial nos países impactados pela crise. Essas são as condições para estabilizar a dívida externa e colocá-la numa trajetória descendente. Esses objetivos estão no cerne do programa de assistência financeira recentemente aprovado para Portugal.
Um novo modelo de governança econômica é necessário para assegurar disciplina fiscal, evitar perdas sustentadas de competitividade e estimular a estabilidade financeira. Para esse fim, em outubro de 2010 o Conselho Europeu aprovou as propostas apresentadas por uma força-tarefa especial, coordenada pelo presidente Van Rumpuy, para um novo modelo de governança econômica, que envolverá:
- Um Pacto de Estabilidade e Crescimento reformado, visando melhorar a supervisão das políticas fiscais e aplicar as medidas coercitivas com maior coerência e antecipação;
- Novas disposições destinadas a reforçar arcabouços orçamentários nacionais; e
- Um novo mecanismo de vigilância de desequilíbrios macroeconômicos.
O pacote legislativo que estabelecerá o novo modelo de governança econômica está sendo negociado entre o Conselho e o Parlamento Europeu.
O "Euro Pact +", acordado em março pelos Estados membros da zona do euro e por outros seis países da UE, visa reforçar a coordenação de políticas econômicas. O Pacto concentra-se nas áreas abrangidas por competências nacionais que são fundamentais para melhorar a competitividade e evitar desequilíbrios potencialmente perturbadores.
Resta ver se o novo arcabouço de vigilância que será adotado será suficiente para assegurar o bom funcionamento da área do euro. O BCE enfatizou a importância de assegurar maior automatização na vigilância e em procedimentos de sanções e de incrementar os custos políticos e reputacionais associados a descumprimento.
Os procedimentos de vigilância econômicos e orçamentários reforçados serão complementados por um referencial de regulamentação e supervisão em nível de UE. Cumprindo as recomendações do Grupo de Larosière, foi criado o Sistema Europeu de Supervisão Financeira, compreendendo 1) novas Autoridades Supervisoras Europeias (as denominadas AES, em inglês) para o setores bancário, segurador e para mercados de valores mobiliários e 2) a Diretoria Europeia para Risco Sistêmico (ESRB, em inglês) para cuidar de questões macroprudenciais.
Além disso, um referencial para o gerenciamento de crises inter-nacionais no setor bancário da UE está sendo considerado e um Mecanismo de Estabilidade Europeu (ESM, em inglês) - uma linha permanente de prestação de socorro financeiro aos Estados membros da área do euro sujeitos a rigorosas condicionalidades - deverão entrar em vigência operacional no início de 2013. A ESM disporá de uma capacidade efetiva para emprestar €500 bilhões, a ser revista regularmente.
O detalhamento concreto do ESM está sendo negociado, ainda que suas características gerais já tenham sido anunciadas pelo Conselho Europeu. Restam algumas incógnitas, em especial no que diz respeito à amplitude do envolvimento do setor privado: se o ESM deverá agir mais como ferramenta preventiva ou de socorro, e quando podem ocorrer intervenções em mercados primários de dívida. O principal desafio é como evitar que problemas de liquidez temporária se transformem em problemas de solvência e, ao mesmo tempo, minimizar o risco moral implícito em qualquer socorro antecipadamente assegurado.
Outras inovações institucionais foram propostas, entre as quais a eventual criação de eurotítulos, que não foi recebida com entusiasmo por muitos membros da UE. Mas o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e alguns Estados membros demonstraram algum interesse e eu acredito que o debate sobre essa questão está longe de terminado.
Estes são, sem dúvida, tempos desafiadores. A crise mostrou a necessidade de melhor cooperação internacional, melhor governança, supervisão fortalecida dos mercados e maior transparência. Isso é relevante não apenas para governos, mas também para bancos centrais e autoridades supervisoras.
Como bem salientado no relatório de De Larosière, "As autoridades monetárias em todo o mundo e suas autoridades encarregadas de regulamentação e fiscalização financeira podem e devem atuar melhor, no futuro, para reduzir as chances de que eventos como esses se repitam".
(Tradução de Sergio Blum e Sabino Ahumada)
Carlos da Silva Costa, doutor em Economia pela Universidade de Paris, é presidente do Banco de Portugal desde junho de 2010.
Este é o sexto e último de uma série de artigos feitos por renomados economistas brasileiros e estrangeiros convidados pelo Valor para discutir a crise financeira internacional e avaliar seus possíveis desdobramentos.
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