Dezessete anos se passaram desde a criação do Real e o enterro definitivo do regime de alta inflação que prevaleceu na economia brasileira desde o fim dos anos 60. Nesses anos, a economia brasileira foi submetida a diversos choques, provindos das crises de balanço de pagamentos nos países emergentes nos anos 90, do colapso do regime cambial brasileiro em 1999, da primeira eleição de Lula em 2002, de vários episódios de alta de preços de matérias-primas e alimentos importados e/ou produzidos no país e, mais recentemente, da crise internacional iniciada nos Estados Unidos, em 2007.
Episódios que geraram preocupação com uma eventual aceleração da inflação doméstica, mas que, afinal, acabaram se dissipando sem deixar marcas mais duradouras no comportamento da economia. Desde o fim do ano passado, vive-se outro desses momentos, resultado de um conjunto variado de elementos, que vão de mais um forte choque nos preços internacionais de commodities a pressões de demanda doméstica.
Muitos exemplos nos demonstram que grandes catástrofes deixam marcas profundas na memória coletiva e alimentam temores que podem ir muito além do racional. É impossível entender o momento macroeconômico brasileiro sem se levar em conta a persistência do temor da alta inflação, tanto entre as autoridades de governo quanto do público em geral. Ameaças que em outros países poderiam ser vistas como moderadas, tendem a ser magnificadas quando vistas através do prisma do medo do retorno da inflação.
A economia brasileira tem se notabilizado, desde 1994, pelo extraordinário sucesso em manter a inflação dentro de intervalos estreitos em paralelo a um desempenho pobre em termos de crescimento econômico. Os dois governos FHC foram marcados pela semiestagnação. Os dois governos Lula foram caracterizados por um desempenho melhor, mas ainda assim fundamentalmente medíocre. É na sustentação do crescimento econômico, portanto, que se encontra o nó da política macroeconômica.
"Política de câmbio valorizado tem estimulado o investimento, embora promova a desindustrialização."
O Plano Real apoiou-se em uma combinação de instrumentos que já tinha demonstrado sua eficácia em outras experiências. A valorização do real em um contexto de liberalização de importações tem sido, exceto por breves períodos após a crise de 1998, um elemento essencial da estratégia de estabilização de preços implementada desde 1994.
A ameaça de perda de mercados para produtos importados mais baratos conteve as tentativas de recuperação de margens de produtores locais em um cenário em que trabalhadores pareceram satisfeitos com o efeito positivo da estabilidade de preços sobre suas rendas reais (ou suficientemente assustados com a aceleração inflacionária de 1993/1994 para não demandar a reposição de seus picos de renda anteriores).
Essa estratégia sempre foi extremamente eficaz no controle de preços, ao custo, porém, de um efeito colateral importante: a valorização da moeda local cria problemas de competitividade, doméstica e externa, de produtores locais, refletida em déficits crescentes de transações correntes e acumulação de dívidas com emprestadores externos, que conduziram, via de regra, a crises de balanço de pagamentos.
A valorização da moeda local exigiu a manutenção de altas taxas de juros domésticas para atrair capitais externos (e manter no país os capitais domésticos, em um contexto de crescente liberalização da conta de capitais). Os defensores dessa política esperavam que a economia reagisse a essas pressões pelo aumento da produtividade. O saldo final da política, porém, foi visto no final de 1998, quando o balanço de pagamentos brasileiro implodiu e forçou o abandono do regime cambial adotado no início de 1995, em favor da flutuação cambial, e da adoção do regime de metas inflacionárias.
Os instrumentos mudaram, mas os dilemas não. Com câmbio flutuante, sob o regime de metas inflacionárias, o Banco Central continuou a se apoiar fortemente na valorização do real como canal de transmissão das altas da taxa Selic para os preços.
Altas taxas de juros, atração de capitais externos, valorização do real, redução do preço de produtos importados, de consumo ou de capital, parecem ter sido o mecanismo essencial de transmissão da política monetária em uma economia em que os canais mais tradicionais, voltados para a redução de investimentos privados e do consumo de duráveis, se tornaram menos eficazes como parte das heranças deixadas pela alta inflação.
Mas o mecanismo de transmissão via câmbio reproduz, de forma ligeiramente diversa, os problemas dos primeiros tempos do real. Apesar da influência positiva sobre investimentos, pelo barateamento de bens de capital importados, o impacto líquido dessa política foi promover a chamada, talvez com algum exagero, desindustrialização, o emagrecimento relativo da produção local de manufaturados e da participação de manufaturados na pauta de exportações.
"Os controles de capitais foram demonizados, mas eles contêm crises de balanço de pagamentos."
Essa política é danosa para o país em muitos aspectos, suficientemente conhecidos para dispensar listagem. Apenas a miopia e a inércia podem justificar trocar as perspectivas de futuro pelos ganhos de curto prazo que a concentração da produção e exportação de matérias primas pode render.
Alem disso, há algum tempo que se acumulam sinais de que esse mix de políticas está se esgotando, com os efeitos colaterais negativos se sobrepondo aos positivos. A valorização do real parece estar encontrando seus limites. Os diferenciais existentes de juros domésticos sobre os externos já são grandes o suficiente para atrair volumes muitos elevados de moeda estrangeira, independentemente de novas elevações de juros. As entradas de moeda estrangeira ou se convertem em pressões adicionais para a valorização do real ou em aumentos da liquidez doméstica, no caso em que o Banco Central tenta esterilizar esses influxos.
A expectativa de economistas ortodoxos era de que a entrada de capitais seria eventualmente detida pela emergente expectativa de uma desvalorização cambial no futuro, que acabasse por compensar o diferencial positivo de juros, eliminando, em equilíbrio, as vantagens da aplicação financeira no país.
No caso brasileiro dos últimos anos, porém, prevalece o desequilíbrio: as pesadas entradas de moeda estrangeira levam à antecipação de mais entradas no futuro (especialmente quando se tem em conta as enormes dificuldades com que se debatem os EUA e a União Europeia) e, assim, de valorização ainda mais intensa do real. Nessas condições, ganha-se duplamente, nos juros pagos em reais, e na valorização do real.
A política monetária opera de dois modos. Por um lado, ela contribui, junto com a política fiscal, para evitar choques de demanda agregada. O governo opera, pela política fiscal, diretamente sobre a renda do público; pela política monetária, por meio do uso que o público faz dela, adquirindo bens ou ativos financeiros. Em tese, é difícil mas não impossível ajustar a demanda agregada à capacidade produtiva do país de modo a evitar seja o desemprego, seja a inflação de demanda, pela combinação apropriada de instrumentos monetários e fiscais. Se houver restrições sobre a flexibilidade de um dos instrumentos, o outro pode ser utilizado para contrabalançar, em direção contrária, a pressão que se estiver exercendo.
Alem de prevenir choques de demanda, a política monetária (como também a fiscal) pode controlar a propagação de choques de oferta, como no caso de altas de preços de matérias primas importadas ou de escassez de produtos resultante de catástrofes naturais. A política de administração de demanda não tem como evitar esses choques.
Mas se os preços de matérias-primas importadas aumentam, aqueles que sofrem esse impacto de forma mais imediata tentarão repassar a redução de sua renda para outros grupos da sociedade, aumentando os preços do que quer que vendam para eles. A política de esfriamento da demanda desestimula o repasse dessas pressões, impedindo a propagação do choque inicial pelo restante da economia. Quando isso acontece, o desemprego e a redução do nível de atividades são mais do que efeitos colaterais inevitáveis: eles são o próprio mecanismo de operação da política.
É isto que torna o mecanismo de transmissão via câmbio tão atraente, pois ele permite ocultar o preço que a sociedade tem de pagar para manter a inflação dentro de certos intervalos. No curto prazo, todos parecem ganhar (exceto, naturalmente, os setores manufatureiros que competem mais diretamente com mercadorias estrangeiras, aqui e no exterior), seja pela inflação controlada, seja pelo acesso a bens importados, enquanto a perda de substância na estrutura produtiva e a piora da situação do balanço de pagamentos parecem interessar a poucos.
Como o acúmulo de reservas internacionais dos últimos anos ampliou, sem dúvida alguma, a margem de manobra das autoridades, a vida tornou-se difícil para as Cassandras que apontam os riscos dessa estratégia no médio e longo prazos. Não se trata realmente de ideologias, liberais ou quaisquer outras.
Como já mencionado, essa política parece estar encontrando seus limites. Impedida de impactar a economia através da valorização cambial, a política monetária dependerá mais e mais de seus efeitos sobre o nível de atividade e o emprego, inibindo as pressões de firmas que querem aumentar preços e trabalhadores que querem aumentar salários. Os mecanismos de transmissão tradicionais da política monetária no Brasil, contudo, são truncados em muitos pontos, aumentando o custo social de seu eventual sucesso.
Mas uma estratégia de estabilização da inflação que minimizasse os seus efeitos negativos sobre o crescimento deveria se apoiar em três pilares. A ordem em que eles são apresentados a seguir obedece mais às ênfases do debate corrente do que à importância intrínseca de cada instrumento. Todos os elementos são na verdade igualmente essenciais.
Com relação à política monetária, é preciso ter-se sempre em mente que ela atua através da indução ao gasto e da sua facilitação. Taxas de juros baixas estimulam mais gastos, já que o custo de oportunidade da compra de bens diminui. Mas instrumentos que hoje se chamam de macroprudenciais exercem efeito semelhante, não pela indução ao gasto, mas pelo lado da facilitação desse mesmo gasto. Tetos de crédito, especialmente quando incorporados em valores de prestações mais altas, têm uma história de sucesso no controle do consumo no Brasil. O racionamento de crédito, em geral, tem o efeito contracionista que se deseja, quando se quer reduzir a inflação, mas sem os efeitos negativos da elevação da taxa de juros.
Por outro lado, o aumento da eficácia da política monetária depende da eliminação das formas de indexação que sobreviveram ao Plano Real. Aqui se incluem desde a indexação de contratos de várias naturezas, inclusive de tarifas por serviços públicos privatizados, a formas de remuneração. A indexação formal deve ser permitida somente para contratos de duração realmente longa, como em certos tipos de títulos públicos demandados por entidades como fundos de pensão.
De qualquer modo, deveria caber à política fiscal a principal responsabilidade pela regulação da demanda agregada. Consolidou-se no período da chamada preeminência neoliberal a ideia de que a política fiscal é inerentemente ineficiente como instrumento de administração de demanda agregada, sem que realmente se tivesse qualquer evidencia empírica sólida disso, antes pelo contrário. Para que a política fiscal possa, no entanto, exercer realmente esse papel, é preciso recuperar sua eficiência e sua maleabilidade. O ponto de partida deve ser a clara separação entre as funções normais do estado, a prestação dos serviços cujo financiamento deve ser garantido rotineiramente através da coleta de impostos, e as funções extraordinárias, como, por exemplo, as iniciativas de natureza anti-cíclica, cujo financiamento não precisa nem deve obedecer a uma lógica contábil, mas, sim, à lógica econômica.
O terceiro pilar diz respeito ao câmbio, e tem implicações fundamentais para o funcionamento da economia como um todo, no curto como no longo prazos. Durante muito tempo, controles de capitais foram demonizados por alguns analistas, caracterizados como instrumentos estatizantes de inspiração soviética, ou como formas de violação dos direitos sagrados de investidores de colocar seu dinheiro onde quisessem. Controles de capitais nada mais são que instrumentos de regulação financeira, que buscam conter externalidades negativas resultantes da entrada e saída de moeda estrangeira: entradas excessivas valorizam o cambio e causam os desequilíbrios que vemos no Brasil; saídas excessivas criam crises de balanço de pagamentos como as que experimentamos em nosso passado recente, em 1999 e em 2002.
Com contas de capitais abertas como são, na prática, as brasileiras, transações com ativos financeiros são um determinante muito mais importante das taxas de câmbio do que as transações comerciais, que têm efeito direto sobre a renda e o emprego da sociedade. Controles de capitais servem para conter aquelas transações quando elas forem incompatíveis com a manutenção do nível de atividades desejado, permitindo a administração mais eficaz da taxa de câmbio de acordo com as necessidades de crescimento e transformação produtiva do país.
Há todo um conjunto fundamental de iniciativas e reformas que são necessárias para viabilizar a expansão radical do investimento privado no Brasil, diminuindo o custo de financiamentos, diversificando seus canais, ampliando sua capilaridade, e estendendo seu alcance. Alem disso, há que considerar o investimento em educação, a política industrial, "the whole shebang", como se diz nos Estados Unidos, de políticas que a experiência mostrou necessárias para promover o crescimento. Essas, porém, não são propriamente reformas macroeconômicas, pelo menos no seu sentido tradicional, e não serão tratadas aqui.
Uma leitura equivocada de uma frase famosa de Keynes (a longo prazo estamos todos mortos) levou muitos a supor que para keynesianos o curto prazo é tudo o que importa. Na verdade, o sentido da frase era exatamente o contrário, o de que esperar que tudo se arranjasse por si mesmo no longo prazo era uma estratégia equivocada, senão francamente suicida. Chega-se ao longo prazo um passo de cada vez e esses passos são dados no presente, olhando-se, no entanto, para o futuro. Preocupam-me menos as pressões inflacionárias do presente neste país que o crescimento no futuro em que viverá Carolina, minha neta de seis meses.
Fernando J. Cardim de Carvalho é professor titular do IE/UFRJ
fonte:
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/6/20/a-inflacao-e-o-crescimento/noticia_view